12 Guildford Road

O comboio chegou à estação por volta das 19 horas e da janela, os meus olhos tapados com olheiras teimosas, vislumbraram o perfil da estação, que se deixa falar pela sua estrutura em aço formando arcos e as suas plataformas terminais. Porque alguma coisa sempre termina naquela cidade.
O meu estúdio ficava à três exactos minutos de lá. Mas ainda na estação, naquela noite, a florista vendia tulipas mais brancas que o sorriso da prima afastada que em Angola ficou, mais brancas até que a alma da Dessita que por Angola se apaixonou. Na rua, o ar de gente sempre bem disposta, como se o amanhã não chegasse, algumas embutidas em carrinhas e mini vans, a vender coisas que em nenhuma parte do Mundo podem ser encontradas. O meu estúdio ficava escondido na esquina de uma rua íngreme, abraçado por casas da era vitoriana e com janelas que pareciam livros abertos. Ele, tinha uma janela que eu chamava de 'janela francesa' e só abria pela metade, mas mesmo fechada conseguia fazer passar o sopro do inverno gélido que o mundo carregava nos pulmões. Não tinha cama nem colchão, não tinha cadeiras nem mesas. Apenas um balcão que separava a cozinha e o resto do espaço. Tinha também a porta da casa-de-banho e uma outra porta que dava para a varanda, que aos olhos do Gabriel era o lugar perfeito para ler. E criar. E ser. E estar. 
Além de todas as noites e dias em que a solidão foi a maior e mais agradável companhia, o estúdio trouxe muito. A certeza, a dúvida. A certeza das letras nas noites depois das aulas de teatro, que me escondia de tudo e todos, em que o estúdio era o refúgio e as letras as cúmplices. Nos domingos ou sábados em que me deixava ficar por baixo do teu chapéu alto, o mais alto que já tinha visto. Os passos que ouvia, as faces que da janela via, as cores, os sentimentos, as vontades. As vezes que me ajoelhei e as vezes que dancei à frente do espelho que enganava mais do que todo o mundo. As curiosidades que foram matadas e o arrependimento depois disto. Os biscoitos com leite partilhados à meio da madrugada e os ensaios, os sorrisos, os sonos. Sem contar com todos os sonhos e pesadelos, que faziam os objectos andar e a porta abrir. E que além de tudo fazias-me sentir segura. Oh, e as noites em claro. As rainhas. Com papéis em toda a tua parte. Eras tão apertado mas tinhas um espaço para qualquer coisa. Tiveste espaço para me ver crescer. Tiveste espaço para me fazer chegar mais perto daquilo que gosto e daquilo que posso vir a amar. Tiveste espaço para mostrar que pode ser muito mau o que um dia pensei que seria bom, porque fazia parte da idade. Eras tão bonito quando na primavera o sol intrometia-se pela janela e espalhava-se por quase todo o lado. 
Enquanto empacotava as coisas, dei-me conta que afinal elas não eram só coisas nem bugigangas. Eram pedaços de histórias. Pedaços dos dias da universidade que me fez observar o que jamais pude um dia vir a observar e que me ensinou o que jamais imaginei um dia vir a aprender. Pedaços de amizades que me levaram para um lugar cheio de casas brancas que pintavam os postais mais bonitos e outras que inspiraram a fazer o que gosto e a ser muito boa no que faço. Pedaços até do Chevrolet que estacionava no fim da ilha e do coração vermelho mais bonito da Rainha Njinga. Tinha retratos que ansiava por aquele amor que hoje é meu. Espalhado por todo o lado, encontrei o dançar do sorriso e a exactidão do olhar daquela que para sempre minha será, que vive com os mimos cobertos pelo sua cabeleira castanha. Pedaços do meu ser em crescimento, que se depositou em notas soltas, desenhos, fotografias, objectos até. 
E dois anos depois eu disse adeus ao estúdio. E assim que acabei de escrever esta última frase, dei-me conta que afinal foram só dois anos. Mas dois anos tão intensos que pareceram mais. Eu pensei que fosse mais... E mais uma vez a vida prova que o mais importante não é o tempo e sim o momento. O que fazemos, o que vamos à busca, o que aprendemos. Dois anos que podiam se passar por cinco, dos dez anos que na baixa vivi. 
E assim eu disse adeus ao estúdio, de onde a correr eu saí, muito pela falta de tempo, mas também para evitar que lágrima alguma caísse. Hoje, a escrever esse texto, elas foram mais espertas. 
Um dia eu li: ''Todo mundo devia viver em Brighton, pelo menos durante um tempo na sua vida''. Hoje, eu entendo o porquê.

Uma playlist muito doce que eu chamo de 'Words with wings'  
E uma outra que dei o nome de 'Guildford melodies'  

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