Restos de mim


(Enquanto escrevia eu ouvia...)


A mulher que me tornei não me conhece. Meu ser não reconhece. Faz muito tempo que quis escrever sobre mim. Sobre mim não, sobre a minha pessoa. Porque eu e a minha pessoa somos totalmente diferentes. Ou pelo menos tomamos outros rumos. Rumos desiguais. Persistentes.
Vejo restos de alguém. De um alguém que um dia foi. De um alguém que lutou muito para ser. Mas eu venci essa luta. Eu não. A minha pessoa. E em mim, a minha pessoa formou-se. Formou-se sem escrúpulos, sem vergonha, sem permissão. Aquele alguém, retraído, despediu-se de mim. Onde dentro e através recolheu-se, viajando na correnteza do rio que suas lágrimas formaram. Tal rio que eu fiz questão de não deixar transbordar. Eu não. A minha pessoa.
E assim, fui obrigada a ser. A ser algo que a minha pessoa sabia e gostava mas que o alguém, oculto nessa estória, contrariava, não concordava. Eu, de nada sabia. Era apenas eu, a minha pessoa, e o alguém.

O? Talvez A. A alguém, se calhar.

Com a chegada da ventania naquela assoalhada, pelos meus braços, meti-me naquele tecido dourado com detalhes em vermelho no decote das costas. Vinte e uma horas. E de vermelho, cobri-me. Mas um vermelho latejante, escorregadio, quase discernível. Da minha pessoa, de mim, talvez da alguém irreconhecível.
E com todo o cuidado que ainda viajava naqueles dez dedos que se exteriorizavam, escolhi-o, de olhos fechados. Não queria transparecer o dilúvio que em mim se formava e acomodava. Sentia aquilo a crescer por dentro, enquanto por fora, cobria as curvas indeléveis dos meus lábios cor de nuvem. Queria discrição. Queria escape. Queria o não ser e o não estar. Minha boca, coberta, lutava contra todo o discurso melancólico que insistia em se deixar cair naquela circunspecção obrigada. Minhas palavras, revoltadas, queriam ser vomitadas mas naquele momento eu é que não deixava. Não era a minha pessoa nem a suposta. Deixei-os deixar, ficar recostados naquela nuvem que aos poucos cobria todo o meu céu e toda a minha luz. Todo o meu sol e toda a minha lua.
A lua, lua minguante... que banhava aquela noite, aquela noite onde de longe, do canto daquele salão tão bem decorado, com luzes reluzentes, fielmente ele espionava-me. Sentia a força que os seus olhos exerciam ao pousar, atrás daquilo que eu era. Que eu era não, a minha pessoa.
Senti a sua imaginação a carimbar seus desejos no meu odre castanho cor de madeira. De onde estava, acompanhava o percurso que sua respiração fazia à minha volta. A volta da minha pessoa. Não de mim, nem da suposta.

Despercebidos, embebidos numa atmosfera ultramundana, senti seus dedos a desbravarem e descobrirem. E com eles, acompanhando a melodia suave que nos envolvia, eu (des)cobria. Descobria-me. Encontrava-me. Vislumbrava-me em restos. Restos perdidos naquele rio que não naufragou. Restos escondidos por dentro da nuvem que não evaporou. Por detrás daquele vermelho espesso, oculto na melancolia de um discurso extenso mas escasso.
Ele não sabia quem eu era. Mas aproximou-me. Fez-se chegar. Fez-se ficar. E acima de tudo fez-se amar. Eu não sabia quem eu era. Mas deixei-o. Fi-lo permitir. Fi-lo descobrir.

Hoje, assim escrevo. Escrevo sobre mim resgatada na minha pessoa. Por uma pessoa. Um alguém. O alguém.



Comentários

  1. Ultimamente passo muito tempo aqui. Estou cada vez mais apaixonada pela tua escrita.

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