A viagem de Vera

     Tínhamos uma longa viagem para fazer, apesar de que naquele momento procurava pelas minhas forças em cada canto que comigo se cruzava. Na noite anterior fiz as malas dela. Nelas, coloquei apenas o vestido azul que ela tanto gostava e nunca usava e o casaco preto que com ela sempre andava. Pediu que colocasse também os sapatos cor de mel que abraçavam os seus pés tal como luvas. Paradas, uma ao lado da outra, em meus pensamentos flutuava. Queria ser como ela. Queria ser ela. Mas era tarde demais. Não fui a tempo de herdar o que realmente importava. Passei tantos anos a desdenhar e se eu soubesse que tudo aquilo se resumiria naquele vale escuro que por ela esperava, a cada desdém eu daria flores. Flores de diversas cores. Amarelas para alegrar o seu dia. Vermelhas para aquecê-la durante as noites frias. Sentia um vazio. E apesar de tê-la tão perto, já a sentia longe. Era muito longe para voltar, eu sabia disso. E ao admiti-lo, sentia-me a quebrar por dentro. Queria muito levantar daquele meu assento, pegar na sua mão e fugir para um lugar secreto. Onde nada nos alcançasse. Onde o autocarro, da seta dourada, não chegasse. 
Queria muito dizer-lhe tudo. Tudo o que ela foi para mim mesmo sem ser. Tudo o que ela mostrou mesmo sem ter. Tudo o que ela deu mesmo sem ver. E se eu pudesse, trocava todos os meus anos de clara juventude pela cansada idade que ela carregava, pois, assim que o autocarro parasse, já não seria capaz. Quem sabe um dia, à minha paz. 
Eu amei muito. Amei mais ainda. Mais do que muito. Mas à ela, 'amei muito mais do que todo mais do que muito, que um dia amei'. É um amor complicado, para lá do meu eu, entrelaçado. À ela confiei meu pranto em dias cansados, no chão de mosaico branco do nosso abrigo estafado. Tão bem decorado com o perfume irreconhecível que ela carregava. À ela depositei o meu corpo para os seus cuidados em dias machucados, onde deixei que ela passasse suas mãos de fada para aliviar todas as mínimas dores que me tinham alcançado. À ela entreguei meus abraços carentes, na esperança de esvaziar os seus braços de amor e conforto patentes. E naquele dia, de coração fechado, pensei. O que de mim ela recebeu? Já não importava. A dor do momento era grande o suficiente para piorar com aquele egoísmo latente.
Estávamos perto, mais perto do que queria. Naquele momento queria ser capaz de lhe mostrar todos os sorrisos do mundo. Assim, onde ela estivesse, a tristeza não teria espaço para com ela se acomodar.
Queria ser capaz de lhe dizer que tudo iria ficar bem. Que iria ensinar aos meus filhos tudo o que ela a mim ensinou. Que seria uma mulher digna como ela sempre sonhou. Mas não serei capaz. E suspeitei no seu olhar distante, uma melancolia dançante, uma inquietação no seu piscar vibrante. Tal olhar que naquele autocarro eu escapava, evitava.
E se eu pudesse, trocaria aquele momento por um dia no parque, rodeada de flores. Flores de diversas cores. Amarelas para alegrar o seu dia. Vermelhas para aquecê-las durante as noites frias.
O motorista, de olhar fundo, barba branca e reluzente, anunciou a próxima estação. Tinha chegado a hora. Minhas mãos suavam. Suavam como nunca. Minha face tremia. Meu corpo não respondia. Peguei na sua mão pequena e apertei-a forte. Olhava pela janela rectangular que me acompanhava à esquerda. Vi o mundo a revelar-se em diferentes cores e a formar uma paleta recheada aos meus olhos. E ao contrário do que imaginei, vi um dia ensolarado. Olhei para os seus olhos que transmitiam um brilho tão grande que ofuscaram os meus pequenos rasgados. Como sempre, tinha em si um semblante feliz. Da cor do Verão, a minha Vera. A sua aura, a mais ingénua e límpida que conhecia, naquele momento contagiou a minha. Ia ficar tudo bem.
Sim, teria dias de inverno. Dias cinzentos. Mas naquele momento, eu sabia que, pela janela da vida,  receberia raios de sol. Então sussurrei para mim mesma que iria ficar tudo bem.
O autocarro parou. Com toda a pouca força que lhe restava, ela se levantou. Estendi para ela a sua mala, vazia. Alguns passageiros saíram. Outros permaneceram intactos.
Eu repetia para mim mesma: "É muito tarde para voltar, é muito tarde para voltar..." Minha face tremia no mesmo ritmo que minhas lágrimas nela rolavam. E sem dizer alguma palavra, pouco a pouco, vi o meu sol a desaparecer. E de repente, só alguns traços do seu brilho ali permaneceram. E naquele último momento, desejei que se tivesse tornado só minha, para sempre. Desejei que em momento algum a tivesse negado. Desejei o muito. Mais do que o muito. Muito mais do que mais do que muito que juntas vivemos. Momentos indescritíveis, para lá do nosso eu, impercebíveis.
O autocarro, com a sua seta dourada, partiu. Eu, dentro, já não existia. Ela, fora, rejuvenescia. Olhei para o seu assento.
Onde li o seu último recado:
"Torço por ti. Amo-te." 


Comentários

  1. ´´Minha face tremia no mesmo ritmo que minhas lágrimas nela rolavam.´´
    Muito interessante a forma como tu jogas com as palavras. Parabéns pelo texto, está excelente.

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