Dia 2 - Escrever sobre algo histórico


Naquela noite de sol cansado e lua acesa, decidi pegar nos meus botões e partilhá-los com as minhas fiéis companheiras. Estava cansada e lembro-me que tinha os pés inchados. Já se ouvia rumores e notava-se o nervosismo na face de todos que comigo se cruzavam. 
A incerteza tomava conta de alguns e a pergunta que não se queria calar era: "-Já ouviste falar da cena que aconteceu em Lisboa?-" 
Em alguns cantos ouvia-se vozes a cantarolar, noutros, previsões de uma vida diferente. Esperança estava estampada no rosto dos mais velhos. No entanto, era engraçado ver a  inocência no rosto de uma criança no meio do alvoroço adulto. 
Homens, reunidos no bar do Kiluanji na Marginal, bastante eufóricos, tiveram mais um motivo para revirar as pernas e dobrar o corpo a caminho de suas casas.
"-Acabou tudo...-" Muitos diziam. Tinha acontecido o (in)esperado. Um golpe militar em Lisboa que marcou o término do regime político ditatorial "Estado Novo"! 
Eu estava espantada! Bem que tentei ouvir a rádio mas estava díficil. Não tínhamos televisão naquela época. A solução era esperar pelo jornal.
 "-Será verdade?-"  Meus ouvidos não queriam acreditar. Dentro de mim era uma mistura de sentimentos inexplicáveis.  
Não se falava de outra coisa na cidade. Os assuntos do marido da Clarice e da malandra do 3º andar foram rapidamente substituídos pelas palavras: revolta, movimento e revolução. 
Era 25 de Abril de 1974 - Início do processo de implementação do regime democrático.
O dia estava a chegar e pressentíamos. Vimos a independência mais perto, a nossa liberdade e o nosso futuro mais promissor. Pensamos nos nossos filhos, na união e na vitória. Conseguia ver Angola a transformar-se de longe, a um passo de se tornar num País e deixar de ser uma colónia. 
Lembrei-me do trecho da amável carta que recebi de Luther King em 1959:  "...a vossa verdadeira esperança reside no facto de que a independência será uma realidade em toda a África, dentro dos próximos anos."E era verdade! A independência foi uma realidade. Vi brilho nos olhos daqueles que já não acreditavam. Vi empenho e força no rosto de jovens, vi filhos da terra, adotados e biológicos, orgulharem-se dela. Senti o verdadeiro significado de fraternidade.
Eu, Deolinda Rodrigues "Langidila" , vi uma Angola a firmar-se no Mundo! E lágrimas caíram do meu rosto de tanta felicidade. 

*Apesar de no texto dar a entender que Deolinda Rodrigues estava presente na época, no dia 02 de Março de 1967, Deolinda e mais 4 das suas companheiras: Engrácia dos Santos, Irene Cohen, Lucrécia Paim e Teresa Afonso, foram capturadas e levadas para um campo de concentração, onde acabaram por falecer por razões até hoje desconhecidas.
Por isso, é comemorado no dia 02 de Março, o dia da Mulher Angolana. 
Deolinda, ainda estudante no Brasil, enviou uma carta a Martin Luther King Jr. a pedir conselhos de como terminar com a situação de guerra e de ocupação colonial que se vivia no país.
Seu desejo mais fervescente era de "empunhar o fuzil da liberdade". 

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